quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Dr Marcelo Caetano “DEPOIMENTO” - A saída de Portugal e a chegada ao Brasil em 26 Abril de 1974


Na madrugada do dia 26 de abril fui levado num automóvel militar do quartel da Pontinha para o Aeroporto da Base 1 da Força Aérea. Ia sozinho no banco de trás do automóvel e à frente, ao lado do motorista, sentava-se um 1º Sargento pára-quedista, de cara patibular, que durante todo o trajeto foi virado para mim com a sua arma assestada na minha direção. Tive a noção clara de que a um gesto equívoco da minha parte, seria abatido. E ia meditando no que daí poderia resultar. Porque decerto esse homem não recebera ordens dos chefes do movimento para proceder de tal maneira, mas se o fato se produzisse, quem os isentaria das responsabilidades de um frio assassínio - a que a ausência de um oficial acompanhante daria toda a verosimilhança? Assim os chefes correm os riscos dos excessos de zelo dos subordinados.
No avião da Força Aérea onde depois entrei, com os Drs. Silva Cunha e Moreira Baptista, e ao qual mais tarde chegou também o Sr. Presidente da República, fomos convidados a sentar-nos no pequeno compartimento junto à cabine do comando onde costumava armar-se uma mesa quando viajavam personalidades importantes. Mas depois de virem instruções de terra, o comandante comunicou-nos que "por necessidade de equilibrar o peso do avião", tínhamos de passar para o centro dele. Aí tomamos lugar, sentando-se na fila da frente quatro pára-quedistas e nas filas da retaguarda mais uns tantos, todos armados e equipados e sem largarem as espingardas em nenhum momento da viagem. O comando desta escolta para conduzir um Almirante da Armada portuguesa no ativo e três pessoas que até aquele momento desempenhavam altos cargos públicos, estava entregue também a um 1ºsargento pára-quedista.
Tomei nota destes pormenores, a que podia juntar bastantes mais do mesmo género, para sublinhar quão pouco se consideram os vencidos no nosso País e como nele têm nula valia o esforço, a dedicação, o sacrifício para o servir.
Se em 27 de setembro de 1968 me tivesse recusado a aceitar as funções do governo, eu teria mantido e feito prosperar um dos primeiros escritórios de jurisconsulto de Lisboa, ganho o bastante para gozar uma velhice repousada e continuado na minha atividade intelectual que me permitiria investigar a meu gosto e publicar o que me aprouvesse, até com a adoção de atitudes elegantes de crítica prudente dos negócios públicos e de sugestão irresponsável de soluções nacionais.
Sacrifiquei interesses, preferências e inclinações pessoais, tranquilidade de espírito, tudo quanto me era caro, porque julguei que seria uma feia ação, indigna do meu passado cívico, recusar-me por comodismo a ocupar um posto que no consenso geral implicava "a mais difícil herança da História de Portugal". Durante cinco anos e meio trabalhei sem olhar a horas e sem contar a fadiga, procurando todas as formas de ser útil ao povo português através das mil dificuldades que a cada momento surgiam na marcha do mundo e na vida da Nação. Pautei a minha conduta política pela Constituição vigente que observei com escrúpulo e fiz aplicar com não menos honestidade e rigor do que se pratica nos regimes apregoados democráticos.
Como repetidas vezes expliquei, não curei de fazer política de direita ou de esquerda, preocupando-me acima de tudo em procurar ser fiel ao mandato regularmente recebido e pacificamente exercido com sucessivas ratificações eleitorais e em averiguar as necessidades do povo português para as satisfazer da melhor maneira e com a maior eficácia possível. Lutei contra os partidos totalitários, os movimentos que procuravam desmembrar o território de Portugal, as atividades clandestinas, os perturbadores do sossego público pelo terror, e como era meu dever, reprimi a desordem, a imoralidade, a subversão. Fui vencido neste combate, hoje em dia apelidado de "fascista". E em consequência vi-me privado de liberdade, primeiro, e expulso do meu País, depois; tive a casa assaltada, e os parcos bens amealhados ao longo de uma vida de trabalho ameaçados de confisco; fui vaiado, insultado e caluniado, houve quem reclamasse o meu julgamento como criminoso e até me são discutidos os direitos adquiridos em quarenta e seis anos de exercício de funções públicas!
Assisti então sem espanto de maior, diga-se a verdade, ao vergonhoso espetáculo próprio das ocasiões revolucionárias em que o medo é o sentimento dominante e leva os homens às mais inconcebíveis manifestações de mesquinharia, de grosseria, de incoerência, de pusilanimidade e covardia. Mas prefiro esquecer tudo isso. Para me lembrar apenas do outro aspecto, esse positivo, do meu calvário: o das revelações de caráter e das atitudes, por vezes heróicas, de amizade, o da fidelidade de tantos anónimos vindos da massa do povo português e que apesar de todas as dificuldades teimaram em me fazer chegar, num coro impressionante e persistente, palavras de consolação, de pesar, de gratidão, de lealdade e de apoio que no cativeiro e no exílio tem sido, para mim, mais do que lenitivo, exaltante conforto e estímulo.
Amigos extraordinários procuraram e conseguiram tornar mais suaves as minhas horas de amargura: jovens amigos portugueses inexcedíveis de dedicação que nem sei como agradecer algum dia, e os amigos brasileiros que, em S. Paulo ou no Rio, mal chegado ao Brasil me cercaram de atenções e de carinhos e mobilizaram todas as suas possibilidades de me abrir caminho para que, aos 68 anos, pudesse encetar vida nova em terra alheia.
Neste hemisfério luminoso de humanidade que tive a sorte de encontrar deparei com um exemplar cenáculo de bondade, de cristandade e de cultura. A passagem de S. Paulo, onde a reportagem de todo os géneros e feitios se encarniçava sobre mim, para o Rio de Janeiro, era extremamente difícil. E o meu querido Pedro Calmon teve a ideia de solicitar que me fosse dada hospitalidade no Mosteiro S. Bento, a velha abadia que desde os primórdios da cidade do Rio a domina, abençoa e consagra. Fiel à tradição da regra do santo patriarca para quem o hóspede é a imagem de Cristo, não me negou o Mosteiro a sua acolhida e durante vinte dias tive o privilégio de ocupar uma cela monástica e de conviver com a comunidade.
Num mundo retalhado por ódios e malquerenças, eriçado de ferozes egoísmos e em que se entronizam os interesses materiais, é extraordinariamente consolador encontrar um lugar onde a fraternidade não constitui mito, mas prática vivida, e ainda se conhece o sentido transcendente da caridade cristã. Se ainda restam possibilidades de melhorar esse mundo e se os seus males profundos podem ter resgate, será, não nos iludamos, pelo aperfeiçoamento dos homens que isso poderá ser conseguido. Com indivíduos maus não há estruturas que valham. Nesta convicção antiga me confirmou a lição dos monges beneditinos do Rio de Janeiro cuja comunidade constituí o exemplo eloquente do que o sopro do Espírito, dignificando e enobrecendo a condição humana, pode conseguir na renovação da face da Terra.

(do livro "DEPOIMENTO" Distruidora Record - Rio de Janeiro. São Paulo, 1974)